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"Cade versus Judiciário"

Artigo de Laércio Farina

 

Artigo publicado no Jornal O Estado de São Paulo, em 20/06/1997.

DECISÕES DO ÓRGÃO ADMINISTRATIVO, ESPECÍFICAS E DE ORDEM TÉCNICA, NÃO DEVERIAM SOFRER REAVALIAÇÃO JUDICIAL

Na década de 90 o Brasil tem assistido ao incremento do que se pode (quase) verdadeiramente chamar de uma economia de mercado. Dentro desse quadro, a livre iniciativa e seu derivativo, a livre concorrência, assim como toda liberdade, têm de sujeitar-se às limitações necessárias para que não se tornem livre anarquia.


Tais limitações estão contidas na Lei 8.884/94, que estabelece, em linhas gerais, quais os atos que se podem considerar abusivos, estabelecendo penas em caso de infração dessas normas. Além desse caráter repressivo, a lei contém outro, de cunho preventivo, que obriga as empresas, interessadas em atos de concentração, a submeter-se à apreciação da agência governamental, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), quando significativos para o mercado e dentro de determinados parâmetros.


A lei estabelece que essa mesma agência deverá julgar os atos que se possam constituir como abusivos, ou, mais especificamente, as “infrações à ordem econômica”. O julgamento não se dará senão após a instrução do processo administrativo por outros órgãos do governo federal, um vinculado ao Ministério da Fazenda (a Seae), o outro ao Ministério da Justiça (a SDE).


É exatamente aqui que se estabelece o impasse que põe em xeque a eficiência do controle governamental sobre os mecanismos da concorrência. Traduza-se por eficiência o respeito que a coletividade empresarial dedique ao órgão administrativo.


Não se ponha em dúvida que a eventual reforma de decisões do Cade, por parte do Judiciário, notadamente em casos de grande repercussão, afetará sobremaneira esse respeito, agora em sua primeira década de formação. A ainda incipiente jurisprudência da nossa agência antitruste, assim, poderá não ter o papel indicador tão necessário para a definição das estratégias do empresário já que os conceitos da Lei 8.884 não bastam para balizá-las.


Em nosso sistema jurídico, quase nada pode escapar ao exame do Judiciário (ver artigo 5º, inciso XXXV da CF). Excetuam-se, apenas, os atos administrativos ditos discricionários – aqueles que o administrador está autorizado a praticar, segundo o próprio arbítrio, sem que a decisão possa ser levada a reexame judicial. Mas é bem verdade que não existem atos discricionários puros, como sustentam alguns autores, porque todo e qualquer ato da administração pública está vinculado ao menos aos princípios gerais estatuídos no artigo 37 da Constituição, que são os da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade.


A Lei 8.884, como toda norma de Direito Econômico, está sujeita à dinâmica do fato econômico, para o qual não é possível criar tipos legais rígidos. O equilíbrio entre os interesses particulares dos agentes econômicos públicos e privados e o interesse público geral deve ser buscado, pela autoridade responsável, com a consideração da conjuntura e do aleatório. É como o Cade decide, valorando interesses e mensurando consequências de um ato para o mercado.


Ao decidir, o Cade não tem à disposição normas claramente tipificadoras. Vale-se de instrução processual aurida da investigação oficial dos órgãos governamentais e de informações trazidas pelas partes. Aplica conceitos advindos, em sua quase totalidade, da ciência econômica. Reúne, para tanto, uma margem mais ou menos ampla de opinião dos membros do colegiado e, portanto, grande dose de subjetividade, completada pela aplicação da regra da experiência e do conhecimento científico.


A característica desse tipo de decisão é ser discricionária no que se refere ao mérito. Para alguns, trata-se da discricionariedade técnica, tal como debatida no doutrina italiana. E, se admitida como discricionária, a decisão de fundo está resguardada de revisão judicial, exceto no que toca à obediência àqueles quatro princípios constitucionais.


A lógica aponta exatamente para essa interpretação. O Poder Judiciário não reúne a estrutura, a experiência e mesmo o conhecimento científico que os membros do Cade, em conjunto com os órgãos que o amparam, para analisar com igual profundidade as questões de abuso de poder econômico. Como o juiz, ao deparar-se com uma questão ordem técnica, não pode nomear senão um único perito, estaremos diante de situação em que um profissional estará substituindo todo um colegiado e um corpo técnico altamente especializado.


Se houvesse uma justiça especializada, varas privativas de direito econômico, a questão não se apresentaria como tão perigosa, porque a especialização seria bastante para que juízos de valor distintos fossem comparados. Não é, porém, o caso. Nem a solução se apresenta como viável, pois o Judiciário já enfrenta suficientes problemas estruturais.


Não estamos afirmando que as decisões do Cade não deveriam ser em nenhuma hipótese, alvo da reapreciação judicial. Além das questões constitucionais já citadas, seria preciso controlar a intensidade com que a agência antitruste pode interferir na liberdade de mercado, sem falar de eventuais desvios dos procedimentos definidos pela própria lei de proteção à concorrência.


Como exemplo pode-se citar o caso em que o órgão, indo além da analise do caso particular, traçasse normas gerais, como parece ser o caso recente de decisão que definiu a forma que devem ter os investimentos estrangeiros em determinadas situações. Instituiu padrão que a lei não prevê e, aparentemente, afetou até mesmo matéria constitucional.


Essas hipóteses não podem, sob nenhum pretexto, ser excluídas da apreciação judicial. Discricionário é o exame do mérito da decisão do Cade em cada caso específico, pelas implicações técnico-científicas e subjetivas que envolve.


A questão está longe de ser pacífica. As críticas a esse posicionamento em geral decorrem de posições dogmáticas. No entanto, se assim considerada a natureza das decisões do Cade, seu conjunto poderá formar em prazo mais curto do que o Judiciário levaria, importante fonte de informações para o balizamento das atividades empresariais.


A rápida definição das regras do jogo é crucial para o desenvolvimento de uma competição saudável. A dúvida não interessa nem aos agentes econômicos nem à ordem econômica que se quer preservar.




Laércio Farina - Publicado em 20 de junho de 1997

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