Artigo de Renan Tolfo
Artigo publicado no portal Migalhas, no dia 5 de agosto de 2022.
A criação de uma coordenação exclusiva para investigação de condutas unilaterais representa o melhor momento para se levar ao CADE os inúmeros casos de exercício abusivo de posição dominante.
Festividades normalmente acompanham bons momentos para reflexão. Em 29 de maio, a Lei de Defesa da Concorrência (Lei 12.529/11) completou dez anos de vigência. Muito se tem falado sobre o aniversário da lei e o que foi feito pelo CADE nos últimos dez anos.
No período, o CADE julgou quase cinco mil operações de fusão e aquisição de empresas, os chamados atos de concentração econômica. Somente no último ano, 627 atos foram submetidos à análise do CADE, o maior número de sua história. Do total, 611 operações foram analisadas, em tempo médio geral de 33,1 dias, o que é digno de louvor.
Em novembro do ano passado, Alexandre Cordeiro Macedo, Presidente do CADE, apresentou balanço preliminar anual em evento organizado pelo Instituto Brasileiro de Estudos de Concorrência, Consumo e Comércio Internacional - IBRAC. O número de atos de concentração julgados pelo CADE cresce em ritmo acelerado, ano após ano. Em 2017, foram julgados 378 casos. No ano seguinte, 404. Em 2019, foram 433 operações, ao passo que em 2020, os casos julgados chegaram a 454. O número de atos apresentados também é crescente.
Nota-se que o esforço do CADE historicamente está concentrado na análise de operações, o que sem dúvida decorre da imposição de prazo pela lei. Por outro lado, no que tange às condutas anticompetitivas, o julgamento de um tipo específico de infração à ordem econômica, que não é cartel, apresenta queda.
É o caso das condutas unilaterais, práticas abusivas de um agente dominante, como a exigência de exclusividade para contratação ou imposição de preços de revenda. Com exceção de 2019, a quantidade de julgamento desse tipo de infração é cada vez menor - apenas 2 no ano passado.
Se considerarmos que no mesmo ano o CADE julgou o décuplo de casos envolvendo cartéis (22), é ainda tímida a quantidade de julgados de conduta unilateral.
A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE fez este mesmo diagnóstico em revisões por pares sobre legislação e política de concorrência, realizadas como parte do processo para o Brasil se tornar um membro associado do comitê de concorrência daquela entidade, o que se concretizou em março de 2019.
A conclusão da OCDE é de que houve poucas investigações sobre o exercício abusivo de posição dominante desde a nova Lei de Defesa da Concorrência, e um número ainda menor de decisões do Tribunal. É realidade que persiste.
Um dos motivos se encontra no próprio sistema vigente, previsto na lei 12.529/11, e que segue uma tendência já observável desde a lei 8.884/94. A análise de operações vem sendo a prioridade do órgão antitruste nos últimos anos, o que acaba comprometendo a estrutura da entidade no desempenho de outras funções.
Tentativa de reação veio nos últimos meses, quando a Superintendência-Geral do CADE, sob o comando de Alexandre Barreto de Souza, anunciou dedicar uma coordenação exclusiva para investigação de condutas unilaterais. Arrisca-se a dizer que o fato representa o melhor momento para se levar ao CADE os inúmeros casos de exercício abusivo de posição dominante.
Tais fatos trazem à reflexão qual seria o verdadeiro papel da autoridade da concorrência: concentrar esforços na análise de operações, num exercício jurídico-econômico para prever - em cenário futuro e incerto - a probabilidade do exercício abusivo do poder econômico dos agentes, ou aumentar seus esforços no controle de condutas, investigando e punindo os infratores?
Vamos colocar a questão de outra maneira. Um antigo exemplo é o da indústria automotiva, em que parte dos veículos atinge duzentos quilômetros por hora sem que trafegar em tal velocidade seja permitido. Alguns defenderiam que o papel do Estado é obrigar montadoras a reduzir de fábrica a velocidade máxima dos veículos, sob a justificativa do potencial abusivo dos motoristas; outros, no esforço fiscalizatório para identificar e punir os infratores.
O questionamento remete a um passo atrás no tempo, considerando que o antitruste tem raízes norte-americanas, onde duas escolas se destacam. A primeira, de Harvard, preocupava-se com a importância do poder de mercado. A presunção era da ilegalidade das condutas de empresas dominantes. A expressão "big is bad" define bem a linha do raciocínio doutrinário. Os adeptos da escola defendiam um firme controle de fusões e a dissolução das grandes firmas, e que a política antitruste deveria ser aplicada em benefício dos consumidores e pequenos produtores, aumentando-se a distribuição de riqueza.
Emergiram, na década de 1960, as ideias trazidas pela Escola de Chicago. Enquanto os teóricos de Harvard defendiam a ampla intervenção governamental nos mercados, os teóricos de Chicago entendiam que a intervenção poderia ser mais prejudicial do que benéfica. A concentração de mercado não era vista, necessariamente, como um mal. O principal foco da Escola de Chicago estava na eficiência, buscando sempre aumentar o bem-estar do consumidor.
Por aqui, o legislador priorizou um firme controle de concentrações, o que exige análises sofisticadas, muitas das vezes em um curto espaço de tempo. Tudo isto acaba por retardar investigações de condutas anticompetitivas, expressão maior da atividade antitruste.
No momento de comemoração pelos dez anos da lei 12.529/11, e dos sessenta anos do CADE, vale a reflexão sobre os ganhos e perdas da sociedade em razão das escolhas políticas do passado, e o que na essência produz um resultado maior no bem-estar dos consumidores. A escolha não é técnica ou científica, mas definitivamente ideológica.
A atenção do CADE à recomendação da OCDE, dedicando uma coordenação exclusiva para investigação de condutas unilaterais, expõe um ajuste importante nos ponteiros daquele órgão: o crescimento da concentração empresarial não deve sufocar o CADE naquilo que é seu papel mais proeminente.
Acesso digital disponível em:
https://www.migalhas.com.br/depeso/371139/o-cade-acerta-em-seguir-recomendacao-da-ocde
Comments