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"Abuso do poder econômico: dúvidas e soluções"

Artigo em Laércio Farina

 

Publicado no Jornal O Valor Econômico em julho/1995

Durante recente seminário de Defesa da Concorrência e Repressão ao Abuso do Poder Econômico, patrocinado pelo Sinduscon-SP em julho passado, uma pessoa da assistência formulou a seguinte indagação: “Como pode o setor se precaver da concorrência predatória promovida por inúmeras pequenas empresas fornecedoras de material de acabamento, que praticam preços extremamente reduzidos, porque se furtam ao pagamento de impostos e encargos sociais sobre mão-de-obra? O problema é que as empresas que honram seus compromissos fiscais não conseguem acompanhar aqueles preços sem fazê-lo com prejuízo”.

A pergunta ilustra bem o quanto o tema da legislação antitruste, ou da defesa da concorrência, tem sido erroneamente interpretado por muitos que por ele tem se interessado. O que, diga-se de passagem, é perfeitamente natural, dada sua novidade entre nós. Não que se trate de uma novidade legal, já que nossa primeira lei antitruste data de 1962. Mas como o Brasil é titular da curiosa faceta de possuir leis que pegam e outras que não pegam, o fato é que aquela, de mais de 30 anos, não pegou. Ainda que tenha criado a “antitruste agency nacional”, isto é, o Cade-Conselho Administrativo de Defesa Econômica, e este tenha funcionado por quase tanto tempo, o fato é que a sua atuação foi extremamente tímida e ineficiente. E nem poderia ser de outra forma.

A defesa da concorrência não produzir efeitos práticos sem uma política industrial que lhe seja compatível. E é sem esforço que nos lembramos de qual foi a orientação da política industrial a partir da primeira metade dos anos 60 até praticamente o inicio dos anos 90: extremamente intervencionista por parte do Estado, aliado ao fomento da concentração empresarial. Ora, não há politica de concorrência que resista a tal ambiente. Essa é a razão de se dizer que, nessa área (como, alias, em outras), não basta a lei. É preciso a vontade política. Liberdade de mercado decorre da livre iniciativa e este conceito vem expresso nos variados textos constitucionais brasileiros há mais de 50 anos.

Foi somente a partir do início da década de 90 que a abertura do mercado provocou uma mudança no cenário das relações empresariais, propiciando uma efetiva aplicação da legislação antitruste. Essa situação, aliada á fertilidade da legislatura brasileira, provocou o aparecimento de novas leis, procurando regulamentar melhor a questão, mesmo que não fosse necessário (e desde quando é a necessidade que motiva nossos legisladores?). mas não importa. O que releva é que, de uns três anos para cá, o Cade passou a implantar, de forma muito mais eficaz, o necessário controle estatal às relações de um mercado que se propõe ser livre. Diga-se, entre parêntesis, que não se pode confundir o controle com a intervenção estatal. A perniciosidade desta nada tem a ver com a necessidade daquele, sem o que o exercício da liberdade (de qualquer liberdade) culmina por se transformar em anarquia.

A matéria é, assim e como dito, nova. A pergunta feita aos palestrantes daquele seminário bem ilustra as confusões a que o tema da margem. O problema que afeta o setor específico referido naquela indagação não pode ser enfrentado, em princípio, pelos órgãos de repressão ao abuso de poder econômico. Não é matéria que justifique uma representação àqueles. Antes, deve ser objeto de denúncias aos órgãos governamentais específicos e encarregados da arrecadação dos encargos fiscais que estando sendo sonegados.

Esse tipo de confusão tem sido observado não só entre leigos, como foi o caso, mas também entre advogados e magistrados, seja pelo mesmo motivo, a novidade do tema, seja pela diferença que há entre outros ramos do Direito, de trato mais frequente, e aquele no qual tal matéria é tratada, o ramo do Direito Econômico. É que este ultimo trata diretamente com o fato econômico, cuja dinâmica determina que a lei que o regulamenta não admite tipificações fechadas, muito ao gosto da nossa tradição jurídica. O próprio exemplo contido naquela pergunta poder ter conotações diferentes se praticado por uma gama de pequenas empresas, sem nenhuma possibilidade de ser considerada um cartel, ou se praticado por empresa que represente, por exemplo, mais de um terço de participação no mercado. Tal modelo ilustra claramente o porque de o tipo não poder ser fechado, como gostariam alguns juristas. Um fato pode infringir a ordem econômica em uma determinada conjuntura de mercado e ser perfeitamente inofensivo em outra, sob a ótica da defesa da concorrência, ainda que infrinja a legislação fiscal, por exemplo.

A análise conjuntural, assim, é essencial à interpretação do fato que se apresenta ao órgão julgador. Nesse passo, é elogiável a iniciativa do Sinduscon-SP para desenvolver um trabalho que represente uma radiografia do ramo, a fim de subsidiar qualquer iniciativa que se pretenda adotar, perante os órgãos governamentais, no sentido de preservar a livre concorrência ali, reprimindo ações cartelizadas que efetivamente se constituam em atos abusivos de dominação de mercado. Os exemplos, alias, são variados e sobejamente conhecido no setor.

A inadequada interpretação do que sejam as questões relativas ao tema resultam em dúvidas até adequadamente colocadas em um simpósio que tem por objeto justamente esclarecer aos participantes sobre a mecânica da matéria. Mas tem resultado, também, em inúmeras representações infundadas perante a SDE- Secretaria de Direito Econômico, órgão que tem a incumbência de instruir os procedimentos que futuramente irão a julgamento perante o Cade.

A dinâmica e a flexibilidade do tema exigem que cada caso seja tratado e analisado individualizadamente, a fim de que não se submeta aos órgãos que fiscalizam a ordem econômica, com a inevitável consequência do arquivamento do processo, o exame de fatos que podem ate justificar a ação de outros órgãos governamentais, mas que não comportam nem sequer conhecimento sob a ótica da repressão ao abuso do poder econômico.




Laércio Farina - Publicado em 01 de julho de 1995

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