Reportagem de Juliana Machado
Reportagem publicada no jornal Valor Econômico em 23/2/2016

"Além de ter sido marcado pela forte desvalorização da bolsa, o ano de 2015 resgatou um assunto que colocou os acionistas brasileiros em mais um alerta: as ações coletivas nos Estados Unidos, conhecidas como "class actions". O tema não é novo, mas voltou ao radar dos investidores após a avalanche de casos contra companhias brasileiras, que podem trazer danos aos acionistas locais em diversas frentes.
Hoje, são quatro gigantes nacionais no radar da Justiça americana por alegações de perdas causadas a acionistas: Petrobras, Braskem, Vale e Eletrobras. No caso mais emblemático, além de uma ação coletiva, a petrolífera estatal enfrenta 28 processos individuais nos EUA após vir à tona o envolvimento de ex-diretores em casos de pagamento de propina e lavagem de dinheiro que, segundo as alegações, causaram danos aos detentores de recibos de ação (ADR). A acusação é de que a companhia violou leis do mercado de capitais do país ao se envolver em atos de corrupção.
Já a mineradora Vale enfrenta no Tribunal de Justiça do Distrito Sul de Nova York acusações de que também teria causado danos aos titulares de ADRs ao não prestar informações legítimas sobre o desastre ambiental com o rompimento de uma barragem de rejeitos da Samarco, joint venture que opera em conjunto com a anglo- australiana BHP Billiton, em novembro do ano passado em Mariana (MG).
No caso da Petrobras, se a estatal vier a ser condenada a pagar algum tipo de indenização aos investidores que se sentiram lesados, apenas os detentores de ADR poderão ser ressarcidos. Isso acontece porque o juiz Jed Rakoff, que cuida do julgamento nos Estados Unidos, definiu que apenas os titulares desse tipo de papel estão enquadrados na classe de acionistas. Assim, além de absorver os prejuízos causados pela própria corrupção, que deteriorou substancialmente o valor de mercado da Petrobras e a levou a realizar baixas contábeis bilionárias, o investidor do papel no Brasil não terá acesso a uma eventual indenização cujos custos devem sair do caixa da própria companhia.
Contudo, mesmo em casos de empresas não envolvidas em corrupção, como a Vale, as perdas também são cumulativas porque, além do custo da indenização, o investidor precisa absorver as perdas já geradas com a desvalorização dos ativos como consequência do próprio processo e do desgaste da companhia.
"Em qualquer caso com pagamento de indenização para investidores de ADRs, a perda é dupla. O acionista brasileiro perde com o impacto que o fato gerador em si causa sobre a empresa - a corrupção na Petrobras e o acidente da Samarco no caso da Vale, por exemplo, - e quando a indenização é efetivamente paga, porque ele arca com esse valor e sequer é compensado", explica Érica Gorga, doutora em direito pela USP e parecerista dos acionistas minoritários no processo da Petrobras em curso na Corte de Nova York.
A advogada é autora da tese da "dupla circularidade", publicada no site da Universidade de Colúmbia (EUA) em dezembro de 2014, que trata das perdas duplas que acionistas podem ter em todos os processos transnacionais envolvendo valores mobiliários e que corram em uma jurisdição mais protetiva dos direitos dos minoritários. No estudo, Érica lembra que a história das ações coletivas na Justiça americana envolvendo empresas brasileiras já teve no passado outros protagonistas, como Aracruz e Sadia em 2008, quando operações com derivativos e instrumentos de proteção cambial trouxeram prejuízos bilionários a essas companhias, quase levando-as à falência. Após o episódio, as duas empresas foram compradas: a Aracruz pela Votorantim Celulose e Papel (VCP), resultando na Fibria, e a Sadia pela Perdigão, dando origem à BRF.
Para tentar contornar os prejuízos duplos que as ações em curso lá fora podem trazer, advogados ouvidos pelo Valor seguem a mesma linha: o investidor no Brasil deve buscar reaver o que perdeu por meio da ação civil pública, parente mais próximo da ação coletiva americana disponível na Justiça brasileira. Embora acessível, o instrumento tem suas limitações: as leis 7.913/89 e 7.347/85 determinam que, entre os agentes privados, apenas associações com pelo menos um ano de existência podem propor tais ações civis. Do lado dos entes públicos, estão aptos Ministério Público Federal (MPF), Defensoria Pública, União ou estados e municípios, autarquias, empresas públicas, fundações ou sociedades de economia mista.
Lá fora, as ações coletivas fazem parte de uma indústria avançada. Consistem na abertura de um processo com um reclamante líder, representado por escritórios especializados em litígios de títulos, fraudes financeiras e violação dos direitos dos acionistas, seguida pela adesão de outros grupos, pessoas ou fundos que tenham queixas semelhantes contra uma empresa ou instituição. Na maior parte dos casos, as ações referentes a valores mobiliários são abertas em tribunais distritais e alegam que o réu violou determinadas regras do mercado de capitais dos Estados Unidos, causando prejuízo aos acionistas. Uma ação típica tem duração média de dois a três anos, embora o tempo do caso possa variar conforme sua complexidade.
Em relação à atuação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), compete à autarquia cobrar do MPF a defesa do patrimônio dos investidores e dos interesses do mercado de valores mobiliários, nas esferas civil, administrativa ou criminal. É na esteira desse compromisso que as duas entidades mantêm, desde 2008, um acordo para atuar conjuntamente na prevenção de atos ilícitos no mercado de capitais.
Segundo os termos do acordo, o estreitamento de relações entre os dois órgãos visa trazer mais agilidade às ações de prevenção, apuração e repressão das práticas lesivas ao mercado de capitais, além da troca de informações, documentos, estudos e trabalhos técnicos relacionados à regulação e fiscalização que possam contribuir com as ações das duas entidades.
"Se olharmos para o caso da Petrobras, em que houve lesão e indução do acionista ao erro, e para a competência dos reguladores de mercado, a CVM teria o dever de cobrar o MPF de forma mais contundente e atuar conjuntamente para resgatar o que foi perdido. O que tem sido feito ainda é pífio", sustenta Érica.
Segundo advogada, principal alternativa para investidor brasileiro tentar reaver eventuais perdas é ação civil pública
Nesse contexto, segundo a advogada, a melhor maneira de o investidor brasileiro se proteger de perdas com ações coletivas é comprando apenas ADRs, embora isso "mate o mercado de capitais brasileiro em geral", ou optar pela ação civil pública no Brasil. "Eu diria que é a única alternativa, embora não apropriada, de o investidor tentar reaver as perdas", afirma. O acionista poderia ainda abrir processos individuais contra a empresa, mas essa opção, por ser a mais custosa, acaba se tornando menos viável, especialmente no caso de pessoas que estão justamente buscando uma forma de reaver o que foi perdido.
"Normalmente, as ações coletivas ajuizadas nos Estados Unidos terminam em acordo, mas o impacto financeiro para a empresa é muito relevante. Nesse caso, o acionista pode entrar com uma ação coletiva contra a companhia no Brasil. Não tem a mesma força, mas é a melhor via. Ela pode até demorar um pouco mais, mas cria uma discussão complexa, com efeito em cascata", analisa Fernanda Farina, doutoranda pela Universidade de Oxford, no Reino Unido, e representante do escritório L. Farina Advogados no país.
Para ela, o caminho é o investidor ser proativo e buscar o ressarcimento das perdas por meio de ações civis públicas "de caráter privado", ou seja, abertas via as associações. Na avaliação da advogada, além de ser o instrumento mais forte de que dispõe a jurisdição no Brasil, o dano foi causado na esfera do investimento privado; logo, o MP não é o melhor representante porque não é nesse âmbito que a cobrança precisa ser feita.
"Eu defendo um incremento das ações civis públicas com esse caráter 'privado', via associação, porque é a vítima que tem que se movimentar para reparar os danos em um processo que coloque a empresa como réu e os diretores como corréus. Precisamos sair da cultura do processo individualizado. O movimento de coletivização é mundial. Em um mundo de massas como o nosso de hoje, as resoluções precisam ser de massa", diz.
Já na visão do advogado e ex-presidente da CVM, Luiz Leonardo Cantidiano, as perdas duplas também podem acontecer no Brasil, à medida que o investidor não reclamar seus direitos e ficar fora do pagamento de indenizações que possam acontecer aqui dentro. Além disso, do lado doméstico, o acionista terá custos em qualquer caso, diferentemente da estrutura jurídica das ações coletivas americanas, em que são os escritórios especializados nesse tipo de processo que buscam investidores para participar da ação e que custeiam as despesas envolvidas.
De forma geral, ele defende que é papel de quem negocia ativos de uma empresa avaliar quais os fatores de risco envolvendo a operação e, no caso de ter sido lesado por má conduta ou má gestão, buscar as formas disponíveis de resgatar o investimento perdido. O ideal, segundo Cantidiano, seria criar um mecanismo de ação coletiva que se aproximasse mais do que é a ação coletiva americana porque, além de limitada, a ação coletiva no Brasil não vale para qualquer perda e pode ser barrada por determinadas cláusulas do estatuto da companhia, como a arbitragem. Do lado do MPF, o advogado ressalta que o órgão nem sempre está atualizado em relação à matéria e atua com outras prioridades.
Dessa forma, em relação às empresas, o advogado defende que a saída é ter mais atenção e cautela na decisão de acessar o mercado internacional porque todas as corporações estão vulneráveis às ações coletivas, enquanto que, do lado do investidor, fica o estímulo de que vale a pena brigar pelos direitos. "A ação civil pública é uma coisa envergonhada e poderia ser melhorada do ponto de vista legal. Acredito que, no Brasil, poderia haver flexibilização da lei para que as pessoas pudessem abrir processos mais facilmente, como acontece nos Estados Unidos. Agora, se o investidor se considera prejudicado, vale buscar formas de tentar ser ressarcido usando os elementos jurídicos disponíveis ou batalhando para que eles melhorem. É isso que vai aperfeiçoando o funcionamento do mercado", afirma.
O Ministério Público defende que, no mercado de capitais e títulos mobiliários, as punições precisam ser imputadas aqueles identificados como responsáveis pelo prejuízo. Ou seja, a percepção judicial é de que compete ao MPF direcionar as acusações ao acionista controlador ou aos indivíduos identificados como autores do dano, mas não necessariamente à pessoa jurídica.
"Se pegarmos como exemplo os casos de 'insider trading', em que acionistas negociam ativos com informações privilegiadas e lucram indevidamente, você claramente consegue apontar quem é o autor do ato", afirma o mestre em direito econômico e procurador da República Fernando Antonio Alves de Oliveira, que coordena o Grupo de Trabalho de Mercado de Capitais vinculado à 3a Câmara do MPF, responsável por questões de defesa do consumidor e ordem econômica.
"Entretanto, os investidores podem formar uma associação e resolver um problema macro em uma única ação e isso é positivo para a Justiça e para os acionistas", afirma o procurador.
Para os investidores, fica a tarefa de repensar as estratégias para evitar que novas perdas pela exposição externa aconteçam, além de usar a ação civil pública não apenas para o ressarcimento do prejuízo, mas como forma de resgatar a credibilidade do mercado brasileiro. "É o início de uma retomada. Eu concordo perfeitamente que o acionista brasileiro tem que ter a mesma garantia que o investidor lá fora tem. Se não houver isso, ele não pode poupar o mercado", afirma Aurélio Valporto, economista e vice-presidente da Associação dos Investidores Minoritários.
Valporto confirmou ao Valor que a associação segue em tratativas para entrar com ação civil pública contra a Petrobras e defende que esse tipo de instrumento, via associação, "é uma boa saída" para responsabilizar as empresas. Caso elas de fato se considerem igualmente lesadas por algum tipo de negligência ou ato criminoso, a responsabilidade de se defender, criar controles e buscar vias de ser ressarcida é da própria companhia.
"Perante o investidor, é fundamental que a responsabilidade da empresa seja também apontada para criar segurança jurídica, porque, afinal, foram os papéis dela os ativos negociados, e não dos indivíduos causadores do dano. No nosso entendimento, foi criado um mito de que a companhia é vítima. São poucos os procuradores que se movem, mas a lei 7.913 nos dá esse respaldo", afirma.
A advogada Érica concorda que ainda falta no Brasil, no aspecto das ações coletivas, entender que a empresa é responsável pelos atos ilícitos para além de tipificar crimes e identificar os conselheiros e diretores financeiros responsáveis. "Quem está indo ao mercado é a empresa, o ativo está no nome da companhia, então é ela quem deve responder. Se ela pode receber dinheiro e investimentos de pessoas, ela também tem que indenizar pessoas. Todos são titulares de direitos e obrigações", defende. "
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Juliana Machado - Publicado em 23 de fevereiro de 2016