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"O CADE e sua função mais importante"

Artigo de Laércio Farina

 

Artigo Publicado no Jornal Estado de São Paulo em 19/10/2022



"Conselho sempre demonstrou maior interesse com o controle de concentração de mercado do que com a fiscalização dos abusos de agentes dominantes"



Desde 2019 o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) é a pioneira entidade brasileira admitida como membro associado do comitê de concorrência da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que aceitou nossa agência antitruste após profundo exame pelos pares, que é a maneira como é identificada a avaliação da instituição.

O ingresso veio acompanhado de recomendações daquele órgão, sendo algumas voltadas para questões relacionadas a critérios de aplicação de multas, outras a critérios gerais de avaliação de conduta das empresas e, destaque-se o que parece ser a principal delas: a de incrementar o número de investigações de práticas de abuso de poder econômico, as chamadas condutas unilaterais (não confundir com cartéis ou com infrações da propriedade industrial, como concorrência desleal, por exemplo).

A recomendação foi provocada pela histórica inércia do Cade em atentar para as práticas adotadas por agentes que dominam dado mercado e afetam o ambiente que deveria ser de saudável concorrência entre todos.


O motivo de tal comportamento inerte reside na tendência dos estudiosos brasileiros de se perfilarem à Escola de Harvard, movimento que desde o início do século passado afirmava ser o tamanho das empresas um mal em si, e propunha a vedação ao crescimento desenfreado culminando até mesmo com o desmembramento daquelas que se colocassem como alvo. Em contraposição a tal escola, a de Chicago, em meados daquele século, elegia a eficiência como um valor mais relevante que o tamanho da firma.


A escolha entre ambas obedece mais a critérios ideológicos do que técnicos ou científicos. Isso porque há acadêmicos de renome defendendo cada uma delas (por exemplo, Frederic Scherer, por Harvard; ou o Nobel Milton Friedman, por Chicago), o que traduz a existência de suficiente base argumentativa para uma ou outra opção.


A evolução de nossa legislação sutilmente seguiu a tendência de Harvard e o resultado é que o Cade sempre demonstrou uma preocupação maior com o controle de concentração de mercado do que propriamente a fiscalização dos abusos cometidos por agentes dominantes - exceção feita à persecução dos cartéis.


Mas o que a Constituição determina é que "a lei reprimirá o abuso do poder econômico" e, não obstante, o legislador preferiu se render à escola que privilegia o controle do crescimento das empresas, mesmo que a própria lei admita o crescimento por eficiência e não vede o monopólio, como em outras jurisdições.


A própria atualização da lei de concorrência (da anterior Lei nº 8.884 para a nova, Lei nº 12.529) teve como modificação mais notável a modernização do controle de concentração, que passou de a posteriori para o antecipado, seguindo o exemplo da maioria de outras jurisdições. O que se busca controlar, com o modelo anterior ou o atual, é o crescimento da empresa a ponto de assumir tal poder econômico que dele possa abusar.


Tal opção passa por uma visão ideológica do papel do Estado e sua intervenção na economia. Mas será a mais adequada? Tome-se, por exemplo, a fabricação de automóveis. Não são raros os veículos que conseguem atingir mais de 200 km/h. Isso significa um potencial de infração da lei nas mãos de todos os motoristas. Deveria o Estado coibir com tal potência, ou dotar as estradas de fiscalização eficiente para punir o abuso daquele que detém tal poder?


O Estado totalitário chinês providenciou um bom exemplo, como noticiado há poucos dias. Limitou, por decreto, a velocidade máxima de scooters elétricas (controle preventivo, tal como o de concentração econômica). O resultado? Uma enxurrada de fraudes, seguindo tutoriais na internet, dos usuários para contornar o limitador eletrônico. É de indagar: não seria mais eficiente a fiscalização do excesso de velocidade praticado pelos usuários?


Transpondo o raciocínio para o controle da concorrência, pode-se repetir a pergunta: qual o papel mais eficiente da parte do Estado? Controlar o crescimento por fusões e aquisições ou implantar um sistema rigoroso de controle de condutas? De qualquer modo, ainda que a opção não se coloque de maneira bipolar - como se fosse a política tupiniquim -, parece necessário um equilíbrio entre as duas atividades.


E o Cade parece, finalmente, caminhar nessa direção. Recentemente, a Superintendência-Geral criou uma coordenação com a competência de cuidar de processo de conduta unilateral. Apesar da boa nova, deve-se ter em mente que o Cade rarissimamente age por iniciativa própria, ou de ofício. O motivo é que inexiste estrutura fiscalizadora para tanto. Depende, portanto, de representação de interessados, o que transporta para os agentes econômicos, principalmente, a função de movimentar a máquina estatal naquilo que, repita-se, parece ser sua função primordial: a de identificar, julgar e reprimir o abuso do poder econômico. Tal como manda a Constituição e tal como recomenda a OCDE.



Laércio Farina - Publicado em 19 de outubro de 2022.

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