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"Cartéis: uma sinusite econômica"

Artigo de Laércio Farina

 

Publicado no jornal O Estado de São Paulo, seção Economia, em 25 de janeiro de 1993.

A legislação antitruste, que em nosso país é conhecida como de repressão ao abuso do poder econômico, ou de defesa da livre concorrência, tem por objetivo proteger e mesmo intensificar a força competitiva. Deve atuar contra os interesses monopolísticos ou oligopolístico sempre que a ação destes implique perdas sociais, como o seu poder de controlar os próprios preços.

A recente veiculação, pela imprensa, da contribuição dos setores oligopolizados para a inflação de 1992, ilustra claramente o ponto que deve ser combatido. Tais setores, segundo levantamento da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE) da Universidade de São Paulo, apurado pelo Jornal Gazeta Mercantil, sustentaram quase 50% do índice, direcionando, assim, o nível de todos os preços da economia.

Em contrapartida, setores nos quais se identifica um alto índice de competitividade entre os agentes tiveram seus preços reajustados abaixo, mesmo, da inflação verificada no período.

Dentre os setores oligopolizados, o campeão foi o da indústria farmacêutica, que acumulo um reajuste de 35,18% acima da inflação! Não é descabida, como se vê, a pública exasperação do Presidente da República quando se insurge contra os aumentos de preços dos remédios que controlam (mas não curam) sua sinusite.

Os preços daqueles setores não são, sozinhos, os responsáveis pela inflação, como é óbvio. Mas demonstram ser um componente significativo desta. Ao lado, portanto, das necessárias políticas cambial, fiscal e monetária (estas, sim, relacionadas com a raiz do problema inflação), se impõe a efetivação de uma politica antitruste, algo que nunca tivemos de fato, apesar de dispormos da legislação.

Se alguém duvida de sua importância, ouça-se um dos maiores especialistas mundiais em organização industrial F.M. Scherer, que é consultor da Federal Trade Comission dos EUA: A política antitruste é uma das armas mais importantes utilizadas pelo governo no intuito de harmonizar o comportamento maximizador de lucros das empresas privadas com o interesse público.

Nunca tivemos uma politica antitruste porque, durante a maior parte do período dos governos militares, o que se viu foi o incentivo à concentração empresarial, que é mola mestra do cartel. Em fase posterior, sob os discursos de abertura da economia, observou-se a implantação das câmaras setoriais, em substituição ao malfadado CIP.

Ora, se o cartel é a reunião de diferentes empresas, de um mesmo setor, com o objetivo de aplainar, dentre outras coisas, seus preços, uma câmara setorial só é diferente porque tem, na mesma reunião, alguém do governo dela participando. Como conciliar tal quadro com a expectativa de implantação de uma política antitruste?

É evidente que o caminho não é este. O controle direto dos preços, seja pelo tabelamento e congelamento, seja pela discussão com os setores envolvidos, nunca apresentou os resultados esperados. O preço represado sempre acaba sendo recomposto ao nível desejado pelo empresário, na primeira oportunidade de liberação. E que se dane a elasticidade da demanda. Reduz-se a produção para que seja mantida a margem de lucro.

Mas tal raciocínio não vale inteiramente para os setores submetidos à forte concorrência. O empresário precisa estar atento à demanda, buscando ampliar, ou manter suas margens de lucro por meio da eficiência produtiva.

É preciso, assim, que os oligopólios, ou cartéis, sejam forçados à competição, penalizando-se os ajustes, por mais sutil que seja sua demonstração, com todo o rigor da lei.

Os mecanismos existem. Da lei e da agência antitruste já dispomos. Estão ai o Conselho Administrativo de Desenvolvimento Econômica (DPDE) formalmente aptos a desempenhar a função fiscalizadora necessária. A utilização dessa agência governamental, o incentivo às suas atividades e o prestígio de suas decisões parecem ser instrumentos muito mais eficientes para a correção das chamadas falhas de mercado, do que as que vêm sendo empregadas.

Dois poderes precisam se conscientizar disto: o Executivo e o Judiciário federais. Aquele precisa ampliar a estrutura do órgão de investigação e instrução (o DPDE), que, hoje, luta com dificuldades para enfrentar o volume de trabalho. Já o Judiciário tem a seu cargo a missão de valorizar as decisões do Cade, evitando reforma-las com base exclusivamente no eterno vício da cultura jurídica de nosso país: o apego à forma. Não deve esquecer que as questões econômicas que cercam os atos caracterizadores de conduta cartelizada não pecam, em geral, pela forma. Prestigiar as decisões do Cade significa conferir-lhe o peso de credibilidade necessário para se firmar no papel que deve desempenhar.

O exemplo está em curso. Algumas empresas do setor farmacêutico já demonstraram a intenção de recorrer ao Judiciário contra condenações impostas pelo Cade. Mas este não deve se quedar inerte, mesmo enquanto a primeira condenação esteja submetida à reapreciação pelo Judiciário, porque à reiteração de infrações deve corresponder à repetição da pena com os agravantes legais de reincidência. O rigor de sua aplicação acabará por dobrar os setores renitentes, forçando-os a buscar seus lucros na eficiência, não na tabela de preços, ou nos ajustes entre seus agentes. Parece ser forma muito mais saudável do que, por exemplo, premiar tais setores com isenção de impostos para a redução de seus preços. Isto não somente parece um absurdo em época em que se discute o ajuste fiscal, como também significa que nas costas do contribuinte é que repousará o ônus da ineficiência empresarial.

A fiscalização deve ser constantemente estimulada, por meio de denúncias e representações dirigidas à agência especializada. O Estado, assim, somente intervirá nas situações em que o mercado apresentar distorções. No mais, deverá deixa-lo fluir livremente. Afinal, o preço da liberdade de mercado é a eterna vigilância.

O poder, seja qual for, resiste a seu controle, e o dos oligopólios não é diferente. A força destes em ditar seus preços, assim como a sinusite presidencial, não tem cura. Mas pode ser controlada.



Laércio Farina - Publicado em 5 de janeiro de 1993

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